Entre o que sentimos e o que mostramos: o trauma de não poder ser quem somos

Desde cedo, aprendemos que ser aceitos é mais importante do que sermos verdadeiros. Ainda na infância, percebemos que expressar tristeza, raiva ou vulnerabilidade pode gerar rejeição, crítica ou afastamento. Assim, pouco a pouco, passamos a esconder partes de nós mesmos, e é justamente nesse movimento de adaptação que nasce um dos traumas mais sutis e profundos: o trauma de não poder ser quem realmente somos.

Esse tipo de trauma não está necessariamente ligado a um evento trágico. Na verdade, ele é construído ao longo do tempo, através de micro experiências que moldam nossa forma de sentir e agir. A cada vez que precisamos silenciar o que sentimos para preservar o vínculo com alguém importante, o corpo registra a mensagem: “não é seguro ser eu mesmo”.

O preço de esconder a própria verdade

Quando vivemos a partir dessa crença, entramos em um modo de sobrevivência constante. Isso significa que nossas reações emocionais e corporais passam a ser guiadas mais pelo medo da rejeição do que pela verdade interior.

Por exemplo, ao invés de expressar uma opinião, podemos optar por agradar. Em vez de dizer “não”, dizemos “tudo bem”. Essa adaptação garante aceitação momentânea, porém cobra um preço alto: a desconexão de si mesmo.

Com o tempo, o corpo começa a refletir o que a mente tenta esconder. Tensão muscular, respiração curta, dores recorrentes e fadiga são formas de o organismo expressar o que foi calado emocionalmente. Como explica o psiquiatra Bessel van der Kolk, autor de “O Corpo Guarda as Marcas”, o corpo “mantém a memória do trauma” e reage como se o perigo ainda estivesse presente, mesmo quando a mente acredita estar em paz.

Vergonha e culpa: as sentinelas do falso eu

Do ponto de vista psicológico e neurobiológico, as emoções de culpa e vergonha são centrais nesse processo. Ambas atuam como mecanismos de autoproteção: a culpa nos faz tentar reparar o que acreditamos ter feito de errado; a vergonha, por sua vez, nos faz esconder quem somos para evitar rejeição.

Segundo Gabor Maté, “toda vez que precisamos escolher entre ser autênticos e sermos aceitos, as crianças escolhem a aceitação, porque a perda do vínculo é, para o cérebro infantil, uma ameaça de sobrevivência”. Assim, a vergonha se torna o alicerce de uma identidade moldada pelo medo, e a culpa, o freio de mão que nos impede de avançar, mesmo quando queremos mudar.

A neurociência explica que essas emoções ativam regiões como a amígdala cerebral e o córtex pré-frontal, responsáveis pelo controle emocional e pelo senso moral. Quando o trauma está presente, essas áreas funcionam em desequilíbrio: a amígdala permanece em estado de alerta, enquanto o corpo libera hormônios de estresse como o cortisol e a adrenalina. O resultado é uma sensação crônica de tensão, inadequação e congelamento.

O corpo como espelho da repressão emocional

Enquanto tentamos “entender” racionalmente nossos comportamentos, o corpo já manifesta, silenciosamente, as respostas que não ouvimos. A desconexão entre mente e corpo é o terreno fértil da traumatização, pois impede a integração entre o que pensamos, sentimos e expressamos.

Quando o corpo é ignorado, as emoções permanecem aprisionadas no sistema nervoso, perpetuando o ciclo de adaptação e repressão. Como aponta Peter Levine, criador da Somatic Experiencing, “o trauma não está no evento, mas no corpo que ficou preso nele”.

Portanto, reconhecer o que o corpo sente, e não apenas o que a mente entende, é o primeiro passo para transformar os efeitos do trauma.

Do entendimento à percepção: o caminho da transformação

Compreender as causas de nossos padrões é importante, mas não é suficiente. A verdadeira transformação ocorre quando conseguimos perceber o que sentimos no corpo, nas emoções e nas relações.

Quando há percepção, há presença. E onde há presença, o corpo começa a confiar novamente. Assim, os músculos relaxam, a respiração se aprofunda, e o sistema nervoso encontra novas rotas de segurança e regulação.

Essa é a base da Terapia de Somatização do Trauma — integrar mente, corpo, emoções e instintos primitivos para restaurar a autenticidade e a vitalidade natural do ser.

Afinal, viver uma vida verdadeira não é um ideal distante, mas um processo de reconexão com aquilo que sempre esteve em nós, esperando ser sentido.

Reflexão final

Pergunte-se:

  • O que em mim eu ainda escondo para ser aceito?
  • Quais emoções meu corpo tenta expressar através da dor, da tensão ou do silêncio?
  • O que em mim precisa ser percebido, e não apenas entendido?

Entre o que sentimos e o que mostramos, há uma distância que o trauma cria, mas que a presença, a escuta e a integração podem dissolver.
O retorno a si mesmo é o início da verdadeira liberdade.

Danielli Malini

Entender não é o mesmo que perceber: a diferença que muda tudo na terapia

De uns anos para cá o autoconhecimento está em todos os lugares.
Livros, cursos, terapias, podcasts, todos nos convidam a entender nossas emoções, nossos padrões e nossa história.

Mas há uma armadilha sutil nisso: quanto mais tentamos entender, mais ficamos presos na mente.
E por mais paradoxal que pareça, entender não é o mesmo que perceber.
E essa diferença muda absolutamente tudo em um processo terapêutico.

A mente entende. O corpo percebe

A mente é o lugar do significado, da interpretação e da lógica.
Ela organiza o mundo em ideias, causas e efeitos.
É a mente que diz:

“Eu sei por que ajo assim.”
“Entendo de onde vem isso.”
“Já trabalhei esse tema na terapia.”

Mas o entendimento cognitivo não significa que o corpo — onde ficam registradas as feridas emocionais — se reorganizou.
Essas feridas não são apenas lembranças guardadas na mente.
Ele é uma impressão fisiológica, uma memória corporal e emocional, registrada na musculatura, na fáscia, nos batimentos cardíacos, na respiração e no sistema nervoso.

Por isso, alguém pode entender perfeitamente suas feridas e, ainda assim, reagir como se nunca tivesse compreendido nada.
Porque a reação não vem do pensamento, vem do estado fisiológico.

O limite do “entender”

A mente busca controle.
Ela tenta resolver a dor com mais pensamento, mais análise, mais explicação.
Mas o trauma não se dissolve pela via racional, porque ele não nasceu lá.

Enquanto a mente busca explicar, o corpo tenta completar reações interrompidas: defesas que ficaram presas, emoções congeladas, respostas de sobrevivência que não puderam ser concluídas.

E é por isso que muitas pessoas se frustram com processos terapêuticos puramente mentais: porque entendem, mas não sentem mudança real.

O corpo continua reagindo como se o perigo ainda estivesse presente: acelerando o coração, tensionando o diafragma, contraindo os ombros, bloqueando a respiração.

O trauma é, antes de tudo, uma alteração fisiológica.
E só pode ser transformado quando percebido e processado pelo corpo.

A potência de perceber

Perceber é diferente de pensar.
Porque perceber é sentir, presenciar, escutar o corpo.
É notar o calor nas mãos quando algo te toca emocionalmente, o nó no estômago quando algo te ameaça, o suspiro que sai quando algo relaxa.

A percepção acontece no campo sensorial e emocional, e é através dela que o sistema nervoso encontra segurança para se reorganizar.

Quando você percebe, o corpo ganha espaço para:

  • Completar o que ficou interrompido;
  • Soltar o que estava preso;
  • Integrar a experiência vivida.

É nesse campo de percepção que o trauma começa a se transformar em consciência viva, e não apenas em um conceito mental.

O papel da Terapia de Somatização do Trauma

Na Terapia de Somatização do Trauma, trabalhamos justamente essa passagem:
do entender para o perceber, da mente que explica para o corpo que expressa, do controle para a presença.

Essa abordagem integra mente, corpo, emoções e instintos primitivos, permitindo que o sistema se reorganize de dentro para fora.
Não é sobre apagar o passado, mas sobre restituir a fluidez vital que ficou aprisionada nas respostas de defesa e sobrevivência.

Quando o corpo é incluído, o processo deixa de ser apenas uma reflexão, e se torna uma vivência real de transformação.

Um convite à presença

Quantas vezes você já entendeu tudo sobre um padrão seu…e mesmo assim, continuou reagindo da mesma forma?

Talvez não falte entendimento.
Mas falte percepção.

Comece observando seu corpo.
Respire com presença.
Note as sensações sutis que aparecem quando algo te toca.
É nesse simples ato de perceber que começa o movimento da verdadeira transformação.

Quer aprender a trabalhar o trauma de forma profunda, integrando mente e corpo?

Conheça a Formação em Terapia de Somatização do Trauma, criada por mim, Danielli Malini — uma abordagem que une neurociência, psicologia e terapias corporais para conduzir processos terapêuticos verdadeiramente transformadores.

Danielli Malini